Desejar é imoral?
Adorei as historias contada por Charles Eisenstein em sua obra O mundo mais bonito que nossos corações sabem ser possível, então decidi ir publicando por aqui já que seria grande demais para caber em um formato instagram. Essa aqui fala sobre desejo e acredito que pode ajudar você que está um pouco perdida sobre o que seria essa coisa que eu falo tanto na clinica..rs O desejo é um tema escorregadio, muito moralizado pela tradição judaico/cristã… por isso acredito ser importante uma “recontextualização” para que fique mais claro o que está em jogo quando falamos de desejo.
“Certa vez, depois de uma palestra na Inglaterra, uma jovem me perguntou se eu voava pelo mundo dando um monte de palestras. Sim, respondi.
E ela então me perguntou: como você justifica isso?
O que você quer dizer?
E ela começou a me explicar sobre a pegada de carbono das viagens aéreas, e nesse momento eu a interrompi: Ah, Eu não me justifico.
Faço isso porque me faz sentir vivo, me dá prazer, eu gosto de fazer isso. E continuei dizendo que poderia inventar uma justificativa se ela desejasse. Talvez eu pudesse dizer que acredito que o efeito final dos meus voos e palestras, compensa dióxido de carbono produzido pelas minhas viagens aéreas. Talvez algumas pessoas ouçam o que eu digo e escolham uma carreira de permacultura ao invés de direito tributário. Talvez tenham a coragem de viver uma vida que contribua para uma sociedade ecológica. Mas mesmo que isso seja verdade, estaria mentindo se dissesse que isso é uma justificativa. A verdadeira razão, a verdade, é que faço isso porque gosto.
A mulher ficou horrorizada. Você é completamente imoral, disse. Pela sua lógica você poderia fazer o que bem entendesse, só porque tem vontade. Isso justificaria comer carne animal, sacrificar a vida de um ser senciente só pelo prazer transitório de seu paladar. Pode justificar o assassinato, se isso é o que você tem vontade de fazer. Você não pode estar falando sério. Você não pode estar dizendo as pessoas para fazerem tudo o que querem!
Sim, é exatamente isso que eu estou fazendo, respondi. A conversa parou por aí, mas eu darei continuidade a ela agora. Ficará claro que fazer o que queremos rapidamente leva a compreensão de que não sabemos de fato o que queremos. Que o que nos foi dito sobre os objetos naturais do desejo é uma ficção.
Qual exatamente é o problema de fazer o que eu quiser, ou fazer o que me faz sentir bem? Por que o autodomínio é visto como uma virtude?
Se o que queremos é destrutivo para nós mesmos e para os outros, então de fato seria horrível incentivar as pessoas a fazerem o que querem. Se Calvino estava certo sobre a total depravação humana; se o progresso humano é de fato uma ascensão do estado de selvageria bestial; se a natureza é, no fundo, uma guerra de todos contra todos e a natureza humana vencerá esta guerra por quaisquer meios; se os seres humanos são implacáveis maximizadores do seu próprio interesse através da racionalidade, então, sim, devemos dominar o desejo, conquistar a carne e transcender o prazer, subjugando a natureza biológica interna assim como conquistamos o outro, tornando-nos senhores cartesianos e possuidores de nós mesmos bem como do universo.
Essa é a velha história. Na nova história não mais estamos em guerra com a natureza e não mais procuramos dominar os ser. Nela descobrimos que o desejo tem sido tão destrutivo porque fomos enganados. As coisas que pensamos que queremos são em geral substitutos para o que realmente queremos, e os prazeres que buscamos são menores que a Alegria da qual nos distraem. Do ponto de vista normal, de certo parece que só com disciplina podemos vencer as tentações que nos cercam: comer demais; drogas; videogames; surfar na internet sem pensar; e tudo mais que consumimos. Essas coisas são inegavelmente destrutivas para a nossa própria vida e mais além; portanto, seria de esperar que não podemos confiar no desejo de jeito nenhum. Mas quando percebemos que essas coisas não são o que de fato queremos, nosso objetivo não é mais o primeiro desejo, mas identificar a verdadeira necessidade ou vontade, e supri-la. Essa não é uma tarefa fácil; é um profundo caminho de autorrealização.”